Bert: Essas são coisas que acontecem constantemente na terapia. E muitas pessoas ainda lutam com essas questões. Aqui torna-se evidente que a necessidade de ser inocente é uma necessidade que se origina na infância.
E a necessidade de que seus pais digam: “Você é bom”. Uma pessoa assim só vê os pais e não a realidade. Não é mais capaz de diferenciar o que é bom para a vida dela e o que não é, e não consegue se libertar.
Se ela se libertar, se sentirá culpada. O progresso sempre está ligado à culpa. Ninguém pode progredir sem se defrontar com a culpa e aceitá-la, isso é inevitável. Um exemplo muito simples: Um filho deixa a família para se casar. Separa-se da família e talvez vá viver com uma companheira que não agrade aos pais. Mas ele a ama. Uma pessoa nessa situação só pode se casar se infringir as normas impostas pelos pais.
Toda criança precisa transgredir proibições para se desenvolver. É assim que se progride. Os pais proíbem algo, porque acham necessário.
Mas precisam, ao mesmo tempo, acalentar secretamente a esperança de que a criança transgrida a proibição. Se a criança não transgredir, isso é prejudicial tanto para ela como para os pais.
Pais que tudo permitem aos filhos também os prejudicam. A criança, nesse caso, não consegue desenvolver sua força interior. Por isso, esse desenvolvimento só é possível através de transgressões. Cada uma delas leva a um fortalecimento do ego. Ao mesmo tempo, a criança permanece ligada aos pais em um outro nível.
3. Gabriele: Qual a sua posição como terapeuta nessa sociedade laica, em que os sacerdotes estão perdendo a autoridade e o papel que têm como pastores de almas?
Bert: Para mim é importante ajudar as pessoas a resolver conflitos e colocá-las em contato com o poder de cura de sua família. No fundo, isso não é só terapia, é um trabalho a serviço da reconciliação. Nesse sentido, também sou “assistente de almas”. E me sinto como um professor. Terapeuta é um termo que não significa muito para mim. Para mim, o termo terapeuta está ligado à ideia de “fazer algo” — tratar algo e ter isso sob controle. No meu entender, o destino e as forças que estão em ação são muito poderosos para que eu possa me considerar capaz de intervir e fazer realmente alguma coisa a respeito.
4. Gabriele: O senhor diz que a família é o vínculo mais profundo que liga os seres humanos. Esse também é o ponto de partida da psicologia clássica. A família como o vínculo mais forte e, ao mesmo tempo, como fonte primária de doenças, neurose e sofrimento psíquico. O caminho da psicoterapia é a libertação, a cura das feridas. A diferença estaria então na maneira de curar essas feridas? Essa cura não seria efetuada através da separação e da libertação dos pais? Ou o senhor vê isso como uma recusa a reconhecer esse vínculo básico?
Bert: Sem dúvida. Estamos ligados à família e ao destino dela. E concordo com a senhora quando diz que esse vínculo é às vezes causa de muito sofrimento. Entretanto, a minha conclusão é outra.
Algumas escolas terapêuticas dizem que o indivíduo tem de se separar da família, opor-se a ela ou combatê-la, se quiser ser saudável. Existem até exercícios nos quais o cliente é exortado com frases como: “Mate os seus pais” (em seu íntimo) ou “Descarregue a raiva” ou “Grite para o mundo toda a sua cólera”. Para mim, isso é ridículo, porque seu único efeito é fazer com que o cliente depois se castigue.
O terapeuta se apresenta então como um pai melhor ou uma mãe melhor, o que em si já é totalmente absurdo. Pois, quando se trata de tomar decisões de verdade ou quando é preciso fazer sacrifícios por causa de um filho doente, os pais verdadeiros se fazem necessários e assumem então a sua posição. E fácil formular frases bonitas numa sessão terapêutica, mas viver junto com pessoas difíceis ou compartilhar o destino delas é uma coisa bem diferente.
A família provoca doenças, não porque as pessoas sejam más, mas porque na família atuam destinos que concernem, tocam e influenciam a todos. Já começa com os pais. Esses, por sua vez, também têm pais e provêm de famílias com os seus próprios destinos, e isso repercute na nova família. O vínculo familiar faz com que os destinos sejam compartilhados por todos. E, se aconteceu algo grave numa família, existe ao longo de gerações uma necessidade de compensação.
5. Gabriele: O senhor poderia descrever mais exatamente o que significa “tomar”?
Bert: “Tomar” é para mim um processo básico. Eu estabeleço um limite bem claro entre aceitar e tomar. O aceitar é benevolente. Tomar algo significa: Eu o tomo assim como é. Esse tomar é humilde e concorda com os pais assim como eles são. Quando faço isso, eu também concordo comigo mesmo, assim como sou. Isso tem algo profundamente conciliatório, é como descansar, enfim. Está além de qualquer julgamento; não é bom, nem mau. Quem se vangloria dos pais tampouco os tomou. A idealização também exclui o essencial.
6. Gabriele: O senhor disse que a adoção desrespeita a ordem. No entanto, em nossa sociedade ela é considerada um grande ato social e os pais adotivos são muito respeitados.
Bert: Se alguém adota uma criança porque não pode ter filhos e quer tê-los dessa forma, isso é uma grande interferência na ordem. Pois os filhos pertencem aos pais. Não considero uma boa ideia dizer a uma jovem mãe: “Em vez de abortar, entregue a criança para a adoção. Nós cuidaremos dela e lhe daremos o que for necessário”.
Seria melhor dizer: “Aceite a criança”. Se ela e o pai ainda não podem cuidar do filho, os avós maternos ou paternos ou parentes podem ajudá-los, acolhendo-o. Dessa forma pode-se resolver o problema mais urgente e a criança permanece na família. Mas o fato de entregar simplesmente uma criança para adoção ou adotá-la sem necessidade premente gera uma grande culpa.
A adoção é justificada quando as crianças não têm ninguém. Se, por exemplo, ambos os pais morreram ou a criança foi abandonada. E um ato justificado e nobre acolher e criar essa criança.
É uma grande injustiça adotar crianças levianamente e tomá-las dos pais e avós. E uma injustiça, em primeiro lugar, com a criança, que é tomada dos pais e da família. Em segundo lugar, com os pais que estão em dificuldades e dos quais se toma a criança desse modo. E, em terceiro lugar, essa atitude impede que se reconheça o fato de que as pessoas são capazes de arcar com o próprio destino.
Se, por exemplo, uma criança que nasceu num país em desenvolvimento cresce em meio a uma grande pobreza e pessoas estranhas dizem: “Nós vamos salvá-la e proporcionar-lhe uma vida melhor”, pode ser que elas não ajudem realmente a criança. Assim não se confia na coragem dela de aceitar a própria família e seu destino. Mas isso pertence à sua grandeza. Observa-se que os pais adotivos sentem-se culpados com essa forma de adoção, pois às vezes pagam a adoção com uma perda na família. Pode acontecer, por exemplo, de perderem um filho natural. Às vezes, a mãe adotiva fica grávida e aborta espontaneamente esse filho, sacrificando-o. Muito frequentemente os pais adotivos se divorciam e um dos parceiros é sacrificado como resgate pela criança adotada.
7. Gabriele: Mas existem também centenas ou milhares de casos em que a adoção tem êxito.
Bert: Existem muitas famílias adotivas e filhos adotivos felizes.
O que digo é válido para adoções levianas, quando alguém quer uma criança para si em vez de confortá-la nos momentos difíceis. Eu me oponho ao abuso da adoção. Se uma criança adotada vê que não tem segurança com os pais naturais, pode reconhecê-los como pais, mas saber que só conseguirá se desenvolver com os pais adotivos. Por outro lado, se os pais adotivos adotaram uma criança e esta não se desenvolve bem — talvez por terem agido levianamente ou desvalorizado os pais da criança —, não podem simplesmente livrar-se da criança. Precisam suportar as consequências como o resultado de uma culpa.
8. Gabriele: Isso significa: Não importa o que se faça, todos somos chamados a servir?
Bert: Sim. E o que considero muito importante é que, sem a disposição para assumir a culpa, não existe capacidade de ação. Aqueles que querem permanecer inocentes também permanecem fracos. Seu empenho para ficar inocentes traz até mais sofrimento para os outros.
Mas aqui uma outra coisa é importante. Graças à experiência que adquiri durante minha permanência na África do Sul, onde negros e brancos permaneciam separados, aprendi algumas coisas sobre os grupos. Quando trabalho com famílias ou com grupos grandes, posso ver que as pessoas que pertencem a um grupo que se encontra em grande perigo se levantam contra aqueles do outro grupo.
Cada grupo desenvolve uma consciência interior que encoraja qualquer coisa que sirva ao próprio grupo e prejudique o outro. Assim as maiores atrocidades são cometidas contra o outro grupo, com a consciência mais tranquila do mundo. Esse tipo de consciência tem, para mim, algo de assustador.
A pergunta é o que a pessoa pode fazer quando se encontra numa situação como essa. Pode sair? Alguns dizem que ela deveria sair. Mas para onde poderá ir se deixar o seu grupo? Nenhum outro grupo a aceitará.
9. Gabriele: E a felicidade? Afinal, ela existe?
Bert: A respeito da felicidade ocorre-me um aforismo que escrevi uma vez:
A felicidade almejada pelo “eu” nos escapa com facilidade.
Nós crescemos quando ela se vai.
A felicidade da alma chega e permanece.
E cresce conosco.
A felicidade existe no âmbito de um determinado movimento da vida, por exemplo, o primeiro amor, a celebração do casamento ou o nascimento de um filho.
Cada fase da vida tem as suas próprias leis e a sua própria satisfação. Isso é um fato frequentemente ignorado. Consideremos a criança no ventre da mãe. Ela é feliz. Mas, apesar de ser feliz, depois de nove meses já não pode conter-se.
Se tiver sorte vai se reencontrar nos braços da mãe, que a alimentará, cuidará dela e a amará. Depois de algum tempo isso já não é o suficiente: a criança quer andar, ir embora.
Então essa criança se transforma num adolescente, cheio de impaciência e de ânsia de liberdade. Depois de algum tempo isso também se toma monótono. Então se inicia uma nova fase: a profissão, o dever, o casamento, os filhos, etc.
Em muitas culturas esse progresso é regulado através de ritos. De modo que a criança passa da infância à adolescência e da adolescência à idade adulta de maneira predeterminada.
10. Gabriele: O que há de errado na nossa ideia de felicidade ?
Bert: A nossa ideia de felicidade é, na maioria das vezes, a ideia que fazemos da felicidade na juventude. Muitos consideram a juventude um período privilegiado, que querem prolongar tanto quanto puderem. Não percebem a perda que sofrem por isso.
Por exemplo, o que faz uma pessoa que, digamos, com 50 anos ainda se comporta como um adolescente? Que não tem família e nem ideia do que isso significa?
De repente, ela fica solitária e nota que perdeu algo importante: a transição certa no momento certo.
Eu vejo a felicidade como algo de muitas camadas. Não é um estado de euforia. Tem mais a ver com a sensação de que estou plenamente integrado à fase de desenvolvimento em que me encontro no momento. Sou uma criança de verdade, sou um jovem de verdade, um homem de verdade, uma mulher de verdade, um pai de verdade, uma mãe de verdade. Sou bem-sucedido em minha profissão, etc.
E isso requer também que eu me retire na hora certa. Esse também é um passo importante, dar lugar àqueles que vêm depois de mim, encarando a morte.
11. Gabriele: Cada pessoa tem um destino predeterminado?
Bert: Predestinação é uma palavra muito forte. Eu prefiro dizer que somos chamados a servir. Isso tem a ver com perseguir um objetivo. Por outro lado, cada indivíduo está limitado por circunstâncias, doença, constituição física, país, povo. Ele se desenvolve no seio daquilo que lhe foi apresentado. Se ele aceita essas limitações, adquire forças para uma vida de realizações.
Como terapeuta presto atenção no seguinte, em cada pessoa: onde leva o caminho dela? Em que direção? E onde estão os limites dela? Eu a levo a concordar com essas limitações. Não dou espaço à ilusão de que seus sonhos possam se tomar realidade.
Uma parte do destino é também a aceitação das consequências das próprias ações e da própria culpa. A pessoa pode ter um parceiro, uma determinada profissão, filhos. Ela pode estar limitada por uma expectativa de vida curta, ou pode estar se encaminhando para um fracasso, tudo isso talvez faça parte do destino dela.
Isso tudo pode acontecer e eu não intervenho aí. Faço a mesma coisa que a pessoa deve fazer. Concordo com esse destino. E, por concordar com ele, posso encontrar caminhos benéficos dentro desses limites predeterminados.
https://iperoxo.com/2018/02/01/constelacao-familiar-11-perguntas-para-bert-hellinger/
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