O isolamento nos fez descobrir outras facetas de quem mora com a gente e de nós mesmas. Com isso, o número de separações disparou no último ano, mas dá mesmo para culpar a pandemia ?
Num domingo de abril de 2020, a professora carioca Luanda e o marido assistiam a uma live de música sertaneja na televisão. Estavam ambos calados olhando para os próprios celulares, sem trocar uma palavra. Incomodada ela quebrou o silêncio: "você consegue se enxergar daqui uma semana nessa mesma situação?".
A resposta do parceiro, com quem vivia há três anos, foi negativa. Ali ao som de Henrique e Juliano, resolveram dar um ponto final no relacionamento. "Ainda estávamos no início da quarentena, mas já não nos suportavamos mais. Um respirava, outro se irritava ", conta Luanda.
A pandemia tem sido apontada como a grande vilã nas estatísticas de separação, que explodiram no último ano. "A vida a dois já é um desafio numa situação normal. Envolve equalizar valores e costumes diferentes, é uma negociação que vai ficando cada vez mais refinada com o passar dos anos. No confinamento os problemas relacionais se agravam. É provável que as questões conjugais já existentes tenham se tornado mais óbvias com as mudanças na rotina. O ponto de atrito entre os casais aumentou .Antes, o dia era quebrado pela reunião de trabalho, academia, happy hour, mas agora há mais oportunidades de observação de si mesma e do par.
Luanda concorda: "Nosso relacionamento vinha se arrastando há meses. No corre-corre do dia a dia, não parávamos para refletir, mas a quarentena me deu a oportunidade de rever o meu casamento e percebi que nossos projetos de vida eram diferentes."
É inegável o peso da pandemia sobre as relações humanas. O excesso de convivência, o medo da contaminação, as consequências econômicas e o luto, presentes de forma mais brutal, influenciam no cotidiano familiar. Tudo isso é gatilho para gerar estresse, mal-estar e conflito. Porém, o determinante na decisão de se separar ou não depende do ponto em que a relação está, se há comunicação efetiva, intimidade e afinidades. O casal precisa ter as ferramentas para solução de conflitos, assim, não necessariamente a separação será consequência dos desentendimentos.
Na casa da advogada Renata a desconexão entre o casal era evidente. "Antes da pandemia, tínhamos uma vida social agitada, o que nos distraia das diferenças entre nós. A gente vai se ocupando, evitando olhar muito para dentro de casa. Era fácil culpar a falta de tempo pela ausência de diálogo, mas, no último ano, essa justificativa não valeu mais." Juntos há 10 anos, o casal não brigava, mas a irritação mútua era constante. Foram meses difíceis. Ambos ficaram em home office e o filho, de quatro anos, passou a ter aulas online. "Foi enlouquecedor, pois toda a carga da educação do nosso filho e dos cuidados da casa ficaram sob minha responsabilidade", lembra Renata. Para completar, o marido perdeu o emprego e a separação teve de ser postergada. "Adiei a decisão porque não queria desestruturar emocionalmente ainda mais o nosso filho, que havia regredido no desenvolvimento, voltando a fazer xixi nas calças."
A gota d'água para a advogada foi quando se deu conta que estava fazendo tudo sozinha, não existia mais companheirismo."No dia 2 de janeiro, pediu a separação. Queria ter certeza de que a decisão não era influenciada por um estresse do momento. Faço terapia ha anos e isso me ajudou a chegar numa decisão lúcida e madura."
A importância da calma
As separações que deveriam acontecer de qualquer maneira e a pandemia exaltou isso. Porém tem também quem tenha reagido a situação e se precipitando na decisão do divórcio. Alguns casamentos poderiam ser resgatados e prosperar. Antes de qualquer parecer definitivo, uma boa saída é, literalmente, ir embora, se afastar um pouco para dar um respiro na relação. Essa foi a tática adotada pela dentista Alessandra. "No começo da pandemia, achei ótimo ficar em casa. Eu me interessei por jardinagem e, como quase todo mundo, por panificação, conta. O problema começou quando o marido ficou desempregado. O parceiro passou a auxiliar o filho deles, de sete anos, nas tarefas escolares, especialmente durante o expediente de Alessandra. A criança foi recentemente diagnosticada com TDHA, e o homeschooling se provou desafiador para família. A dentista notou a impaciência do marido, que tinha brigas constantes com o filho.
"Todos os nossos problemas anteriores eu conseguia tentar contornar, mas não aceitaria submeter meu filho a uma situação beligerante". Ela chegou a pedir para o marido sair de casa, depois de 12 anos juntos, mas ele não tinha para onde ir sem renda e suporte. "O jeito foi continuar juntos, porém nem sequer nos falávamos". No momento em que a situação se tornou insustentável, Alessandra fez uma viagem curta com o filho. Na volta, depois das festas de final de ano, o marido começou no novo emprego e ela estava mais tranquila. "Ainda há incertezas e não me vejo capaz de tomar uma decisão de longo prazo hoje". Ela e o marido seguem vivendo juntos.
Álcool em gel versus louça na pia
Se a toalha molhada em cima da cama e a louça suja na pia geravam brigas familiares antes, a pandemia trouxe um novo conflito: como cada um se cuida em relação a covid-19. Há casais que discordam absolutamente sobre como encarar o vírus. A necessidade de distanciamento social é um dos maiores pontos de controvérsia. Michele até que não tinha muitos problemas com a namorado, apesar dele ser negacionista da pandemia. O relacionamento era recente e a paixão, fugaz. Ele entendia o receio da namorada, asmática, de pegar a doença. Ela reclamava que não podia fazer churrasco ou surfar com os amigos, mas conversavam e ele a respeitava. O problema era a família dele, com quem dividia uma casa. Ninguém usava máscara ou praticava distanciamento. Como iria ela dizer ao sogro que discorda de tudo que ele defendia? Todos tomavam kit covid e acreditavam em medicina quântica-achavam que ouvir uma determinada música seria a cura não apenas para a covid, mas todas as doenças. Por alguns meses ela apostou no relacionamento, mas isso tornava impossível ver os próprios pais, por medo de contaminá-los. Eles tinham outros problemas, mas essa diferença fundamental em como encaravam o cuidado com a vida pesou muito na hora do término. Imagine como lidariam com outras questões de saúde no futuro ou amanhã .
Também a arquiteta Beatriz, enquanto ela faz questão de se isolar, o noivo quer receber amigos em casa toda semana. Brigam constantemente. Ela sente-se angustiada e insegura, mas basta chegar outra sexta-feira para começar tudo de novo. Esse desentendimento acaba levando o casal a embates por outras coisas também. O conflito entre Beatriz e o noivo pode ter outras razões. Muitas vezes a discordância pode ser o bode expiatório de outros problemas. É reducionista dizer que o conflito surge apenas pela discordância acerca das estratégias contra a covid-19. Na verdade, núcleo do problema é a sensação de falta de amor e de cuidado. O contato com a morte é constante atualmente: da TV a rede social, é a maior pauta. Isso leva um desamparo existencial, e é muito difícil se deparar com um parceiro ignorando essa dor e indo para festa, potencialmente colocando a vida dela em risco. Esse sentimento é muito familiar para Beatriz, que agora reconsidera o relacionamento. Sua avó faleceu no ano passado, e ele não deu o apoio emocional que ela precisava. Sentiu-se muito sozinha, e agora está vivendo isso de novo, então se questiona se quer ter um futuro ao lado dele.
A situação se complica ainda mais quando ha crianças envolvidas. Sofia tem três filhas com ex-marido com quem divide a guarda das crianças. Logo no início da pandemia, como ele continuou trabalhando fora, decidimos que elas ficariam o tempo inteiro comigo, mas algumas semanas depois ele quis pega-los para passar a semana com ele. O problema é que ele não segue o isolamento, participa de festas e, no Natal, se reuniu com toda a família. Com direito, ela tentou um acordo, propôs visitas semanais com distanciamento e máscaras. Ele não aceitou e recorreu ao judiciário, que decidiu que as filhas devem passar o final de semana com ele quinzenalmente. Ela sentiu muito medo, até porque sua família está no grupo de risco. Elas ficaram um ano sem ver os avós por causa disso. Aparentemente, porque ela teve filhos com uma pessoa, isso dá a ela o direito de arriscar suas vidas. O que autoriza alguém a colocar em risco a vida de outras pessoas? Nós estamos falando de um cuidado com a saúde, e é claro que a negligência levará pontos de conflito.
Antes tarde do que nunca
Depois de mais de um ano de pandemia, a exaustão é coletiva. Com tantas perdas diárias, seria estranho se as relações conjugais não tivessem sido impactadas. O acúmulo de tarefas domésticas e o cuidado com os filhos estressam e leva a exasperação. Para evitar o efeito cascata de uma briga iniciada muitas vezes por motivos bobos, o que já valia antes da crise atual é preciso conversar. O diálogo é fundamental, como sempre foi, mas você não pode magoar o outro ao falar sem pensar. O papo deve acontecer quando ambos estão disponíveis e dispostos. Não é só falar, precisamos aprender a ouvir, é uma escuta dupla.
Se antes dava para sair de casa para esfriar a cabeça, agora o jeito é segurar o impulso de falas que podem trazer arrependimento mais tarde, e buscar se acalmar de outras formas - até um banho mais longo ajuda. Caso diálogo realmente esteja difícil, a terapia de casal é mais indicada para tentar apaziguar os ânimos. É o que dá para fazer de imediato, em qualquer nível de conflito, e quanto antes melhor. Quando se percebe estar girando em círculos, o ideal é pedir ajuda de um especialista. Nós temos técnicas e ferramentas de comunicação que vão ajudar a estruturar a tomada de decisão do casal.
Isso não quer dizer que a terapia salvará todos os relacionamentos. Se houver vontade de olhar para relação entender o que está acontecendo, outros desejos podem surgir: de manter, de modificar e também de romper. Esse é um questionamento que a pandemia traz: "eu estou feliz?" Quando se tira as outras coisas que podiam desviar a atenção do problema, você vê duas e individualidades convivendo sob o mesmo teto. A casa funciona? Sim, mas e a felicidade? Se a resposta for não, é possível mudar. Nem sempre a crise é por culpa do outro. E é muito duro dizer isso mas precisamos reconhecer. O amor acaba.
Revista Claudia- Texto de Nádia Lapa
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É tão interessante a forma como cada um lida com a pandemia...
O mais importante é respeitar-se mutuamente, porem existem situações que realmente levam a um desentendimento grande, acessando dores profundas e que acabam desestruturando casais e famílias inteiras.
Parece que aquilo que estava submerso veio à tona, expondo todas as feridas ocultas e as diferenças entre as pessoas.
Mas, se existe diálogo, amor e respeito, na maioria das vezes é possível chegar a um denominador comum.
As vezes tenho a sensação de que tudo isso chegou até nós, para que fizéssemos uma mudança profunda em nosso estilo de vida, valores etc... e, sem muita alternativa para usar subterfúgios... e ignorar aquilo que acontece nos relacionamentos.
Boa semana para vocês...
Tais