A gratidão
Ser grato é retribuir um prazer com alegria, compartilhar. A gratidão ensina que há uma humildade alegre ou uma alegria humilde, que sabe que sua causa está em outro, do qual é devedora. Pode ser um amigo, um desconhecido, Deus, o mundo, o importante é agradecer, pois agradecer é bom, regozijar-se com o regozijo alheio. A gratidão realiza um trabalho de luto, porque tudo passa, mas fica a sensação de que o que foi vivido foi bom e sua memória deve ser honrada.
A humildade
A humildade é tão humilde que até duvida que seja uma virtude. Ela combate o narcisismo, o tamanho excessivo do eu e suas ilusões. Ser humilde é amar a verdade mais que a si mesmo. Mas a humildade, a mais religiosa das virtudes, é contraditória. Pode levar ao ateísmo, exatamente porque não consegue conceber como um eu tão cheio de falhas possa ter sido criado por um ente divino.
A simplicidade
Ser simples não é fácil. A complicação é fartamente usada para esconder a pobreza de uma asserção. Esta virtude também combate o narcisismo, pois requer o esquecimento de si, deste ego vaidoso, que interfere e torna qualquer coisa nebulosa e complicada. Toda época tem seus sofistas e sua escolástica. Mas existe algo mais simples que E=mC2? Nenhuma outra virtude persiste se não é simples.
A tolerância
Ser tolerante não é tolerar tudo. Uma tolerância universal seria moralmente condenável e contraditória. Voltaire diz que devemos tolerar-nos mutuamente, porque somos todos fracos, inconseqüentes, sujeitos à mutabilidade, ao erro. Contudo, a intolerância só deve ser admitida enquanto ela não puder ter em mãos os instrumentos capazes de destruir o regime de tolerância que a permite.
A pureza
Existe coisa mais evidente do que a pureza? E coisa mais difícil de descrever em palavras? Todas as religiões a reconhecem e a impõem em seus sacramentos. Impuro é tudo o que se faz de má vontade. A pessoa pura é aquela que pode contemplar tanto o puro quanto o impuro sem se envergonhar, pois para ela tudo é puro. O impuro não; a maldade no coração fá-lo ver maldade em tudo o que o rodeia. Ser puro é amar desinteressadamente.
A doçura
Eis uma virtude feminina. É a força da graça, da beleza, do sorriso. Mansa e tranqüila, ela é passiva, cheia de submissão e aceitação. Qual sabedoria não deve ser assim? Se a vida fosse apenas dominada pela virilidade masculina seria triste e estúpida. Obviamente, quando se diz que ela é uma virtude feminina não se quer dizer que seja exclusiva das mulheres. Existem muitos homens doces e mulheres viris.
A boa-fé
Esta palavra rege nossas relações com a verdade. Confunde-se com sinceridade. É a conformidade dos atos e palavras com nossa vida interior. Não é dizer sempre a verdade, pois podemos nos enganar, mas dizer a verdade em que cremos. Também podemos nos encontrar em situação em que a prudência impede que a pronunciemos. Mas ainda que se cale sobre ela, os atos devem confirmar a verdade em que se crê, como, por exemplo, mentir para salvar a vida de um inocente.
O humor
Buscar um sentido para a vida é querer algo ilusório. Diante disso, duas atitudes são possíveis: sentar e chorar ou apelar para o humor, que nada mais é do que uma desilusão alegre. Nele rimos de nossa pobre condição no mundo. Mas cabe distinguir o humor da ironia. Esta é seriedade, zomba e vê ridículo nos outros, naquilo que odeia, enquanto o humor é aquele que ri de si mesmo, daquilo que mais ama. O humor é um meio-termo equívoco entre a seriedade e a frivolidade. Vê o que há de frívolo na seriedade e de sério na frivolidade.
O amor
Ninguém manda no amor. Pelo contrário, é este sentimento que comanda tudo. E ainda que não exista, o amor comanda pela própria ausência. Ele é tão essencial para a humanidade que esta criou a moral, que nada mais é que seu simulacro. Qual é, em essência, o mandamento da moral? Aja como se amasse. Porém é necessário, antes de abordar o amor como virtude esclarecer os diversos sentidos desta palavra, tão equívoca nos dias de hoje.
O amor Eros
O amor erótico é o amor como falta, como desejo. Em si, ele é contraditório, pois sua realização significa sua extinção. Toda relação baseada neste amor, portanto, está fadada ao fracasso ou à morte, como o demonstram as tragédias românticas. Não há amor feliz, e essa falta de felicidade é o próprio amor. “Como eu seria feliz se ela me amasse”, diz-se ele, “se fosse minha!” Mas, se fosse feliz, não a amaria mais, ou não seria mais o mesmo amor. Eros é um Deus violento, ciumento e egoísta. Mas depois que se sacia, ele se acalma e, por fim, se entedia.
O amor Philia
Mas nem todo amor é falta ou desejo. Existe o amor que é pura alegria, como aquele que temos pelos amigos e pelos filhos. Ele nos deixa feliz exatamente porque é uma gratidão pela existência daquele que nos dá prazer. Os casais só podem perdurar na felicidade após o amor erótico se passarem para este outro tipo de amor. Entre as pessoas que se amam se vive em plena liberdade e não é necessária a existência da moral. Não é necessária a coragem da mãe para defender o filho, não é necessária a tolerância com o amigo bêbado, nem qualquer outra virtude. O amor substitui a todas, naturalmente.
O amor Ágape
Contudo, o amor philia é restrito àquelas pessoas que nos agradam, que nos rodeiam, e por isso alcança um número muito restrito de pessoas. E as pessoas que nos são indiferentes? E as pessoas que detestamos? Não é possível amá-las como mandou Jesus? O amor ágape é um amor criador. Ele pega um objeto desprezível e lhe cria um valor. Este amor é possível mesmo para os que, como nós, são ateus. O autor justifica: “Como não amar, ao menos um pouco, quem se parece conosco, quem vive como nós, quem vai morrer como nós? Todos irmãos diante da vida, mesmo que opostos, mesmo que inimigos, todos irmãos diante da morte: a caridade seria como que uma fraternidade de mortais, e decerto isso não é pouco”.
Do livro: Pequeno Tratado das Grandes Virtudes -André Comte-Sponville
Considerações finais sobre o livro
"O texto é belíssimo, coisa comum entre os conterrâneos de Proust. Não há nenhuma necessidade de se conhecer filosofia para lê-lo. O autor destrincha com maestria os assuntos e as citações aparecem apenas para coroar uma brilhante exposição. Particularmente aprecio a posição do autor, que é ateu e materialista e por isto se recusa a fundamentar qualquer coisa no além. Ele considera que a hipótese de Deus não simplifica a compreensão da existência do universo.
De cara, vê-se uma certa antipatia do autor pelos poetas, especialmente por Rimbaud, cujas razões quem conhece o autor de Uma Temporada no Inferno sabe bastante compreensíveis. E tem razão nisto: os poetas se lixam para a moral e quem segue conselho de poeta acaba muito mal. Outros que recebem uns cascudos de vez em quando são Nietzsche e Kant. O primeiro pela estupidez em que frequentemente cai ao condenar sem mais a compaixão e o segundo pela apego ferrenho à chamada Lei Moral, que condena, de forma absoluta, quem mente.
A maioria dos encômios do autor é dirigida para o grande filósofo Spinoza, um dos homens que mais amaram a humanidade. A ponto de ser banido do meio desta. Também há citação farta de outros autores cuja história de vida é um testemunho de coragem e amor, como Alain e Simone Weil. Esta última, aliás, que era religiosa, faz uma comparação da ausência de Deus no mundo como o afastamento, por amor, de um pai que quer que o filho se desenvolva por si só, que é arrepiante. Este Pequeno Tratado das Grandes Virtudes é um livro para ler e reler constantemente."
Fernando Nogueira da Costa - Economista -
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Desejo que a leitura deste resumo tenha alavancado um movimento interno para descobrir mais sobre suas virtudes, assim como a disponibilidade para "ver" que as vezes estamos completamente enganados com relação àquelas que pensamos que as temos...
Este livro é para ser lido aos poucos pois são muitas as reflexões.
Tais
Este livro é para ser lido aos poucos pois são muitas as reflexões.
Tais
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