O juiz Sami Storch mudou o jeito de fazer direito da família em Castro Alves (BA) e tenta conseguir menores índices de reincidência na Vara Criminal de Amargosa (BA) usando a técnica alemã de constelações familiares (Foto: Arquivo Pessoal)
“’Você me fez ser mãe/pai, e por isso é importante pra mim’; ‘que pena que não deu certo’; ‘foi difícil pra mim, e reconheço que você também teve dificuldades’. São frases assim, parte de uma técnica terapêutica alemã, que eu utilizo para conciliar conflitos no tribunal.
Tudo começou quando eu ainda advogava na área cível, com direito do consumidor, e repelia a área de família justamente por não acreditar na forma como ela tradicionalmente é tratada: com advogados tomando partido de seus clientes e querendo ganhar o processo em detrimento da outra parte. Os profissionais geram um agravamento do conflito e efeito dilacerante nos filhos, que se identificam com os pais e se sentem atacados também.
Um dia, fui a um workshop de constelação em São Paulo, onde morava, em busca de autoconhecimento para resolver um problema pessoal e me apaixonei pela técnica. Comecei a estudar, ler os livros do criador da terapia, o alemão Bert Hellinger. Fiz uma formação em coaching sistêmico (orientação empresarial com base na teoria de Hellinger), depois de constelações familiares (técnica terapêutica de Hellinger) e continuo estudando até hoje.
Segundo Hellinger, a família é um sistema que afeta diretamente cada membro. Um trauma, um fato grave – como mortes, doenças graves, crimes, abortos – de um membro pode ter relação com as dificuldades de outro, até de outra geração, que se identifica com aquele destino trágico e tende a segui-lo. A ideia das constelações familiares é evidenciar vínculos com o passado familiar e poder superá-los.
Primeira tentativa
Quando me tornei juiz, já estava fazendo a formação em constelações e logo percebi como na prática o conhecimento das leis sistêmicas auxilia na condução dos processos, a se posicionar de maneira a produzir mais conciliações. Por isso, passei a aplicar alguns princípios nas audiências. Dizendo algumas frases, pedindo que as pessoas fechassem os olhos e se imaginassem olhando para a outra pessoa e dizendo frases de reconhecimento.
A primeira vez que utilizei a prática verdadeiramente foi durante a disputa pela guarda de uma menina de quatro anos em 2010. Eu trabalhava em Palmeiras (a 450 km de Salvador). Mãe e avó queriam a responsabilidade e trocavam acusações sérias. Percebi que o caso não poderia ser solucionado apenas com uma decisão sobre a guarda da menina, já que qualquer que fosse a decisão, permaneceria o drama e o sofrimento da menina, causado pela disputa entre mãe e avó.
Exemplo de constelações com bonecos, utilizadas em audiências com depoimento de crianças e adolescentes, especialmente em questões envolvendo definição de guarda e adoção (Foto: Arquivo Pessoal)
No dia da audiência, levei comigo um kit de bonecos, que utilizo para a prática da terapia de constelações familiares no atendimento individual – essa terapia também pode ser feita em grupo, com outras pessoas representando membros da família do cliente. Quando eu chamei a menina para ser ouvida, coloquei os bonecos em cima da mesa e pedi para que ela posicionasse os brinquedos e montasse a história da família, mostrando que bonecos eram cada membro da família. Perguntamos onde a menina se sentia melhor, o que acontecia quando se aproximava da mãe ou da avó e outros personagens da família. E ela pôde expressar que ela se sentia melhor com a mãe, ainda que apresentasse um carinho grande pela avó e que ficasse bem com as duas.
Com a prática, a mãe, a avó e os advogados viram a verdade dos fatos naquela dinâmica. Antes, um juiz tinha tirado a guarda da mãe, mas quando a menina se expressou pela constelação, isso foi bem aceito por todos porque ficou muito claro e isso colaborou para a resolução do caso.
Eu também tive a sensação de que a decisão relativa à guarda não tinha sido minha, mas sim da alma da menina, que expressou sua verdade de forma clara e inequívoca, embora não consciente – pois em momento algum lhe foi dito que os bonecos da brincadeira representavam sua família e ela. Ficou evidente, no entanto, que eram deles que estávamos tratando. Um depoimento tradicional, vindo de uma criança de quatro anos, jamais permitiria os mesmos resultados.
Desde então, tive muitas outras experiências pontuais, até que um dia vi a necessidade de expandir isso, porque a versão mais eficaz é quando utilizamos, na constelação, pessoas como representantes da família dos envolvidos na disputa. Os indivíduos se comportam de maneira mais completa, refletindo os sentimentos do retratado e demonstrando sentimentos dos quais muitas vezes não tínhamos conhecimento.
Constelação em grupo
Apresentei um projeto para o Tribunal de Justiça, para aplicação na Comarca de Castro Alves (a 180 km de Salvador) e foi aprovado. Fiz, então, a primeira sessão de constelação coletiva em outubro de 2012, convocando as partes relacionadas de 42 processos. Comecei com uma palestra que explicava a teoria da ciência desenvolvida por Bert Hellinger. Depois, houve um momento de meditação em que cada participante se visualizou dizendo e ouvindo do parceiro frases como “você me fez ser mãe/pai, e por isso é importante pra mim”; “que pena que não deu certo”. Então, convidei quem gostaria de expor o caso e fazer uma constelação propriamente dita. Após uma breve explanação sobre o caso – somente dizia ao que referia o caso (pensão, guarda, divórcio) e apresentava os envolvidos, sem deixar espaço para troca de acusações – convidei voluntários para serem os representantes.
Meditação durante uma vivência de constelações, no Fórum da Comarca de Castro Alves (BA). Na ocasião, casais refletiam sobre o vínculo que os filhos representam em suas vidas (Foto: Arquivo Pessoal)
A pessoa que é escolhida para representar alguém vai se sentir como se fosse ela. A pessoa que for escolhida para representar o pai se comportará com características dele, mesmo que não o conheça. Isso se explica pela teoria dos campos mórficos, que é uma espécie de campo de sentimento que se projeta no ambiente e reflete o sistema familiar e sentimental na qual o constelado está inserido.
Vamos, então, colocando representantes da família dos envolvidos no processo até que se manifeste a origem do problema. Pode ser um avô que foi assassinado, algum aborto, um antigo relacionamento, ou um comportamento que se repete de geração em geração. Quando se descobre o que estava oculto e se reconhece a importância disso, há um sentimento de plenitude e abre-se um caminho para que os relacionamentos fluam melhor.
Muitas vezes, o que dificulta o acordo é a falta de reconhecimento e não falta de dinheiro. Quando a pessoa vê a outra, reconhecendo a importância que ela teve em sua vida e o fato de não ter dado certo é uma pena. Elas se sentem tristes, mas o vínculo de amor abre caminho para a conciliação.
Constelação de ação de família que disputava um inventário. Após olhar para os representantes dos mortos da família, reconheceram a importância deles, representantes de mãe e filha se abraçam (Foto: Arquivo Pessoal)
No momento em que a gente coloca na constelação um membro da família que estava excluído, imediatamente traz uma sensação de plenitude para os representantes e isso tem um efeito pedagógico em quem está observando.
Após a realização desse processo, obtivemos um resultado muito positivo. Dos processos, 27 chegaram a um acordo e um foi extinto. Repetimos em mais quatro ocasiões na região e alcançamos o índice de 100% de acordos em processos em que as duas partes participaram da manhã de constelação.
Não houve criticas. Estamos procurando realmente buscar saber como estão as coisas na realidade, mais do que tratar de forma mecânica, de julgar só com base no que diz o papel. Além do resultado estatístico, a ideia foi muito bem aceita pela comunidade, que se sente que está sendo vista.
A prática também está gerando uma mudança na cultura da comarca, na visão dos advogados e dos servidores da Justiça em relação aos conflitos, que adotaram uma posição mais conciliadora e se tornaram mais assistentes do juiz.
O ideal é que no futuro os magistrados tenham assessores e assistentes que possam trabalhar com a constelação, ou que os mediadores aprendam técnicas de constelação para ajudar seu trabalho e evitar que o conflito chegue ao tribunal.
Constelações na vara criminal
Mudei de comarca. Agora estou na Vara Criminal de Amargosa (a 230 km de Salvador) e continuo usando mais ou menos o mesmo modelo de vivência, mas com temas específicos: ‘violência doméstica’, ‘adolescentes e atos infracionais’, por exemplo.
Independentemente da aplicação da lei penal, acredito que as constelações possam reduzir as reincidências, auxiliar o agressor a cumprir a pena de forma mais tranquila e com mais aceitação, aliviar a dor da vítima e, quem sabe, desemaranhar o sistema de modo que não seja necessário outra pessoa da família se envolver novamente em crimes por força da mesma dinâmica sistêmica.
Já em Amargosa, uma constelação mostra como a dinâmica familiar tornou o jovem vulnerável diante do tráfico de drogas. Na foto, o representante do jovem se defronta com o representante do traficante (Foto: Arquivo Pessoal)
A repercussão está sendo boa. Para olhar os resultados leva mais tempo, já que são casos criminais e nem sempre se resolve com uma conciliação, porque mesmo que as partes entrem em acordo, a ação penal não é eliminada. Para avaliarmos o resultado, é necessário mais tempo para verificar o índice de reincidência.
Não tem como garantir que com uma palestra, problemas antigos vão se resolver. São questões muito complexas. Seria muita pretensão resolver tudo de uma vez, mas faz vítima e agressor se olharem de forma diferente e saberem de onde vem aquela agressão. Ainda que não resolva de uma vez, pode trazer luz para uma dinâmica que estava atrapalhando a pessoa.
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