"Alice, (*) 30 anos, chegou a meu consultório com a seguinte queixa: “não consigo completar aquilo que começo, já comecei faculdade e parei no meio e meus relacionamentos não duram muito”.
Concordamos em trabalhar durante três meses, sendo um atendimento por semana. No terceiro atendimento ela quis desistir, seguindo o seu padrão de não dar continuidade a nada. Só aceitou continuar porque já haviam sido reveladas questões profundas sobre a sua dificuldade.
Primeiro ela tinha um pai ausente. Ele passava freqüentemente dias e até semanas fora de casa. Ela tinha muitas dificuldades com o pai e começou a perceber também o quanto de raiva acumulara em relação ao mesmo.
Um segundo ponto importante é que a mãe tinha uma personalidade dúbia: uma hora era contra o pai e seus atos suspeitos e outra hora aceitava a situação e pedia aos filhos que também o aceitassem.
Ficou claro na terapia que a filha absorvera os sentimentos da mãe. Por amor e com dó do sofrimento da mesma, ela tomou para si toda a raiva e a dor que a mãe acumulara durante toda a sua vida.
É possível assumir sentimentos alheios? Como isso se dá?
O terapeuta e filósofo alemão Bert Hellinger - criador do método das Constelações Familiares – em seu livro "A fonte não Precisa Perguntar pelo Caminho", descreve esses sentimentos e os chama de sentimentos adotados. Ele afirma: “ ...os sentimentos adotados
nascem como efeito de uma identificação.” E exemplifica: “Se eu estivesse identificado com o irmão do meu pai, então sentiria como ele; e não poderia vê-lo, porque na identificação sou como ele”.
nascem como efeito de uma identificação.” E exemplifica: “Se eu estivesse identificado com o irmão do meu pai, então sentiria como ele; e não poderia vê-lo, porque na identificação sou como ele”.
Pois é, durante toda a vida Alice representou um papel que não lhe pertencia. Ela assumiu, além dos sentimentos da mãe, ações da mãe, como por exemplo, decidir como seria o relacionamento dos seus pais. A mãe, na inconsciência da situação, pedia rotineiramente conselhos à filha e até delegava responsabilidades à mesma de se comunicar com o pai e exigir uma mudança de postura do mesmo.
O que você acha que pode acontecer se assumo os sentimentos ou a responsabilidade de alguém?
No caso da Alice, ela começou a se dar conta da tremenda carga que carregava nos ombros. Percebeu também que suas investidas para se relacionar com alguém nunca se sucederam porque ela agia com os namorados da mesma forma que sua mãe agia com seu pai, isto é, com total desconfiança. Ela chegou a declarar que não confiava em ninguém. Mostrei que ela não confiava nos homens por sentir a vibração de traição do pai e não confiava nas mulheres porque sua mãe a traiu, usando-a inconscientemente e colocando-a contra o pai, durante toda a vida.
Alice também se sentia absolutamente frágil e insegura em todas as situações de sua vida. Sugeri que isso provavelmente eram também sentimentos tomados da mãe.
Então, ela fez a pergunta mais lógica e esperada: “como posso sair dessa situação e recuperar minha força e minha dignidade”?
O primeiro passo é descobrir que papéis e sentimentos dos outros você está tomando para si. Isto acontece normalmente em situações familiares onde o filho assume o papel do pai ausente ou a filha assume o papel da mãe que por algum motivo não ‘olha’ para o marido e para a família.
Acontece também em casos nos quais a mãe, por exemplo, casa novamente e leva um filho para o novo casamento: esse filho pode
assumir o papel de parceiro da mãe, não dando espaço para a mãe no seu novo relacionamento.
Reconhecidos os papéis, então, os pais, energética e verbalmente, se colocam diante dos filhos como pais e expressam algo como: “agora eu assumo minha vida e meu relacionamento e decido tudo com meu parceiro/a. Você (falando para o filho/a) é somente o filho/a. Por favor, não interfira mais no meu relacionamento e nas minhas decisões”.
Esse posicionamento resgata profundamente a força que os pais tinham entregado aos filhos e, ao mesmo tempo, retira um peso tremendo dos ombros dos mesmos.
Um caso pessoal:
Lembro que quando tinha cerca de vinte e um anos já trabalhava e ganhava um bom salário. Meu pai trabalhava em outra cidade. Por ser o filho homem mais velho que continuava morando na casa dos pais, fui ‘requisitado’ para assumir o papel de homem da casa, isto é, o papel do pai.
Assumi esse papel por algum tempo, mas num impulso decidi não querer mais esse peso e essa responsabilidade para mim. Saí de casa. Bendito impulso que me levou a descobrir minha vida por conta própria, a tomar minhas decisões e assumir a responsabilidade por meus erros e acertos.
Assumindo por amor...
É importante também compreender que os filhos assumem esses papeis por amor aos pais e os pais permitem inconscientemente. Esse amor entre pais e filhos, nessa situação, é o ‘amor que adoece’. Reconhecido esse padrão inconsciente e resgatando nossos verdadeiros papéis damos espaço para o ‘amor que cura’.
E isto está acontecendo agora com Alice. Ela começou a compreender e aceitar o seu papel de filha. Aprendeu também a aceitar e reverenciar as decisões e o destino dos pais.
Ela começou a ver sua família como semente do seu amor, mas também compreendeu que a mesma família pode ser a raiz de todas as suas neuroses.
O final feliz dessa história ainda pode levar algum tempo, mas certamente, Alice já deu um passo tremendo para uma vida familiar mais harmônica e honesta e uma vida pessoal feliz, equilibrada e aberta para relacionamentos amorosos mais profundos e duradouros.
(*) Alice é nome fictício."
Guilherme Ashara
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