domingo, 19 de maio de 2019

A autonomia do adulto - Bert Hellinger

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Bert Hellinger entrevistado por Gabriele ten Hövel

“A autonomia e liberdade só são possíveis quando, sob outro aspecto, não somos autônomos, mas participantes – quando estamos ao serviço de algo e nisso consentimos.”

Gabriele ten Hövel – O que o senhor diz é, e continuará a ser para muitos, um atrevimento. Afirma que a nossa percepção está condicionada pelos campos onde nos movemos, que estamos “a serviço”, que os movimentos são controlados por poderes superiores e que nem sequer a nossa consciência moral é autônoma, mas que depende da família de origem e do grupo em que nos movemos. 
Onde ficam então a autonomia e a liberdade? 
Até que ponto estamos condicionados? 
Que margem de manobra temos? 
Estes são os pontos sempre em questão quando se discute a filosofia de Bert Hellinger. As pessoas contrapõem que a sua imagem do ser humano é fatalista e até totalitária. Elas consideram que hoje as pessoas têm todas as possibilidades para planejar a própria vida de forma cooperativa e consciente e que os terapeutas existem para ajudar os clientes e eliminar o que entrava esse propósito. Que autonomia tem o sujeito no mundo moderno? Que contribuição presta a sua filosofia e o trabalho com as constelações familiares para essa autonomia?

Bert Hellinger – Do ponto de vista filosófico a ideia de autonomia é ridícula. Continuamente dependemos uns dos outros. Estamos marcados pelos nossos pais e pelo campo onde nos movemos. Os antepassados estão presentes, os mortos estão presentes, as nossas acções estão presentes, tudo está presente. E movemo-nos imersos em tudo isto. Se penso que decidi livremente as coisas da minha vida, torno-me pequeno. Pequeno e insignificante. Estou envolvido em todos esses grandes movimentos, na fila dos ancestrais, na família, e esse envolvimento é independente da minha livre vontade. Muito simplesmente encontro-me dentro disso e também eu movo algumas coisas. Em que medida posso atribuir isso a mim ou não, parece-me irrelevante.

Gabriele ten Hövel – O conceito de sujeito tem duas faces: sujeição e autodeterminação. O senhor enfatiza o ponto de vista de estar dentro, imerso, ou seja, a ideia de sujeição e ridiculariza a autonomia. No entanto, todo o movimento terapêutico dos anos 70 apontava para essa liberdade individual. Certa vez Eric Berne formulou isso de forma exagerada: “se eu te amo, o que isso tem a ver contigo?”. Talvez que, como reação a uma sociedade totalitária, aqui na Alemanha e nos últimos 40 anos, tenha havido uma acentuação excessiva da liberdade individual?

Bert Hellinger – Não tenho opinião sobre a autonomia e liberdade, apenas relato o que observo. Nestes 15 anos de trabalho com constelações familiares não tenho visto outra coisa além daquilo que tenho relatado. Outras pessoas também podem observar e comprovar quanta liberdade existe no sistema familiar. Um bom exemplo é a adoção: o que há de livre e autônomo num caso desses? Nada foi livre, nada foi autônomo. Cada constelação demonstra que estamos integrados num sistema.

Gabriele ten Hövel – A ideia da autonomia foi revolucionária. Sem ela o indivíduo moderno é impensável. É também a renúncia à ideia do nosso provérbio: “eu danço ao som da canção de quem me dá o pão”. A liberdade de pensamento, a liberdade religiosa, tudo tem a ver com isso.

Bert Hellinger – A ideia da autonomia visa justificar uma separação, o que significa que está ao serviço de um determinado propósito. É, por assim dizer, um lema político, faz parte de uma disputa cujo objetivo é o de se livrar de uma tutela que já está ultrapassada. Nesse sentido, a ideia da autonomia serve ao propósito de afrouxar apegos. Sob esse ponto de vista, a autonomia tem naturalmente um firme enraizamento na vida, contudo, quando se generaliza, desvirtua-se. Nenhuma criança é autônoma frente aos seus pais; isso não existe. Nenhuma pessoa é autônoma frente aos seus antepassados – há culturas que sabem isso – ou frente à vida ou à morte. Isso não existe. Autonomia e a liberdade têm valor dentro de um determinado âmbito. Se dentro desse âmbito cumprirem uma boa finalidade, então podemos e devemos apoiá-las. Nesse sentido, também eu me conduzo de forma autônoma, mesmo quando isso não agrada aos outros. Isto é legítimo, apenas isso. Independentes, porém, não o somos. A autonomia e liberdade só são possíveis quando, sob outro aspecto, não somos autônomos, mas participantes – quando estamos a serviço de algo e nisso consentimos.

Gabriele ten Hövel – É claro que nos sistemas não nos movemos apenas pela nossa vontade. Talvez tenha visto a interessante curta-metragem “Balance”. Cinco ou seis figuras estão de pé sobre uma plataforma, cujo centro se apoia numa base.
No centro da plataforma aparece uma caixa.
Os homens distribuem-se pela plataforma, dois mais ao centro e dois mais perto do bordo, pois só assim a plataforma se mantém equilibrada. Então, um dos homens começa a mover-se em direção à caixa e de imediato os outros têm também que se mover, para que não escorreguem para fora da plataforma, que começa a inclinar-se. Então um segundo homem move-se e de novo todos têm de se mover, para que a plataforma mantenha o equilíbrio.

Trata-se de um filme didático sobre a forma como se movem os sistemas sociais.

O senhor descreveu as três dinâmicas básicas dos sistemas: ordem, vínculos e compensação.
Para dizê-lo de uma forma resumida: onde quer que os seres humanos vivam ou trabalhem juntos, eles atuam e colaboram para que o conjunto resulte em êxito ou num enredo. Muitas vezes isto é entendido como se estas dinâmicas fossem uma invenção sua, como se o senhor quisesse exercer uma pressão sobre o indivíduo para inclui-lo de forma forçada em alguma coisa.

Neste filme, “Balance”, estas dinâmicas do sistema tornam-se visíveis. Todos dependem de todos; a questão não está no indivíduo, mas em todos.

Neste sentido sistêmico, entendo que enfatize as limitações da nossa autonomia. Outra questão é saber se, por causa disso, todos somos tomados ao serviço de poderes superiores. O senhor afirma isso aos seus quase 80 anos. Aos meus filhos de 20 anos de idade interessa-lhes a sua liberdade e autonomia.

Bert Hellinger – Claro. Quando vemos os jovens a encarar a vida, com todas as suas expectativas, é maravilhoso contemplá-lo. Naturalmente que as coisas serão diferentes, mas o facto de terem essa crença, é simplesmente belo contemplá-los nessa fé. Faz parte do todo e por isso não tenho nenhuma ideia sobre o correcto ou errado. O caminho em linha recta não é criativo.

Gabriele ten Hövel – No entanto, existe uma diferença entre dizer “todos estamos vinculados” e dizer “eu sou autônomo e independente”. E isto é essencial, pelo menos em determinadas etapas do desenvolvimento.

Bert Hellinger – É a cenoura à frente do burro, que se põe para que ele siga em frente.

Gabriele ten Hövel – Mas quando eles se tornam adultos e continuam a dizer “sou autônomo e livre”, qual é a diferença?

Bert Hellinger – Quando dizem “sou autônomo e livre”, que idade têm eles no seu espírito? Que experiência de vida possuem? Isto é pubertário, simplesmente pubertário. Convém-lhes a eles, mas não tem validade universal.

Observei pessoas que nos seus atos e pensamentos estão envolvidas num campo e o campo determina aquilo que percebemos e aquilo que fazemos. Dentro dele temos, naturalmente, alguma margem de liberdade. Mas pensar que alguém pode decidir livremente sair desse campo é uma ilusão pela qual muitos estão a sofrer.

Gabriele ten Hövel – Em que sentido?

Bert Hellinger – Quando alguém diz “eu quero ser livre”, o que é que ele está a fazer? Ele está a afetar alguém.

Apelar à liberdade significa o direito de separar-me de alguém ou de me recusar a uma obrigação. Por exemplo, como quando alguém abandona os seus filhos. Na realidade essa liberdade significa que eu me subtraio a um vínculo. Nesse momento, essa pessoa esta totalmente debruçada sobre si mesma. E o que é que, nessa liberdade, lhe acontece? Nada, absolutamente nada. Com a liberdade ela não pode fazer nada. Esta forma de liberdade é completamente vazia. Ao fim de algum tempo o que é que ela faz? Entra numa relação, pois não suporta por muito tempo essa forma de liberdade. A liberdade implica estar com os outros. Ninguém consegue estar sem os outros. Quer dizer que, então, ela estabelece uma relação e a liberdade desaparece – esse tipo de liberdade. Especialmente quando se tem filhos, já não se é, em absoluto, livre, contudo está-se preenchido. No âmbito deste vínculo é-se livre, podem fazer-se diversas coisas. As pessoas podem cozinhar isto ou aquilo, abraçar esta ou aquela profissão, ter amigos, pois dentro desses limites há liberdade. E é uma liberdade que toca a todos. Quando alguém diz “não, eu quero ser livre para mim”, ele está a subtrair-se ao vínculo. No entanto, no amor estou simultaneamente vinculado e livre. Esta é uma liberdade relacionada, a outra é uma liberdade irrelacionada.

Gabriele ten Hövel – Portanto, a autonomia dá relevo ao individual, mesmo fora de uma relação. A sua liberdade realça o lado sistêmico, o vínculo; mas também o vínculo necessita das suas delimitações, ou não?

Bert Hellinger – Sim, naturalmente, mas aí encontramo-nos num outro plano. Isso diz respeito à configuração da relação que não questiona o vínculo.

Excerto adaptado por Eva Jacinto a partir das traduções em castelhano e português brasileiro:
Hellinger, B., Ten Hõvel, G. (2006). Un largo camino: diálogos sobre el destino, la reconciliación y la felicidad. 
Hellinger, B., Ten Hõvel, G. (2006). Um lugar para os excluídos: conversas sobre os caminhos de uma vida. 

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