Da super produção ao vazio: o que estamos sentindo na quarentena?
"Imagem do vazio dos dias quentes, azuis e perfeitos aqui no litoral, com praias fechadas
Estou escrevendo esse texto há quarenta dias e simplesmente não sei onde quero chegar com ele. Nesse momento chegar em algum lugar é o que menos importa.
Estamos em casa, em isolamento social, há 35 dias, eu, minha filha de oito anos, completados na segunda semana da quarentena, e meu filho de onze. São tantos temas que estamos vivenciando, tantas coisas que já rolaram, como anos passando dentro de um mês. Como muitas famílias, estamos lidando com todas as novidades que surgiram a partir de algo que não tem nada de novo — estar em casa.
Como escritora, fui sentindo a cada dia os textos querendo sair, até transbordarem em formas de lágrimas, até me acordarem em forma de insônia, até me embrulharem o estômago com azia em uma sopa de tomates. Fiquei ali dividida entre meu corpo me pedindo para desaguar esses pensamentos no papel, minha mente me pedindo para silenciar, e meus filhos me pedindo para brincar, preparar lanches, ajudá-los em algo, enquanto os trabalhos esperam posicionamentos, os e-mails, resposta, a louça ser lavada, as roupas estendidas no varal e os estudos encaixados uma rotina inédita.
Havia uma eixo que se pautava pelos horários e ações de nosso ir e vir. Eu já trabalho em home office há onze anos e também sempre fui muito caseira. Escolhi essa casa justamente porque ela oferece o espaço perfeito para trabalhar, dar espaço às crianças e passar bastante tempo aqui. Ela é grande, confortável e cercada por verde. Tem brisa, uma vista linda, por do sol, árvores e quintal, tem bananeiras e tem silêncio (para mim, um bem valioso). Ou seja, do alto do privilégio do nosso máximo conforto, reconheço o quanto temos, sou grata por estarmos aqui, por termos escolhido viver em cidade de praia há cinco anos e agora ser nosso ambiente de confinamento.
Então, por que tenho sentido tanto desconforto? O que aconteceu com a minha zona de conforto que de repente ela se tornou desconfortável?
Tenho saído do meu centro. Não acordo mais cedinho para praticar yoga, nem as noites são tranquilas. Por vezes acordo no meio da madrugada com preocupações e pensamentos agitados — e soube que esse bonde da insônia da pandemia tem passado em muitas casas. Já não me vejo mais tão disciplinada, ativa e motivada. Me percebo irritada, chorosa e, em muitos momentos, sem paciência. Eu que sempre fui tão paciente. Não estou me reconhecendo. Quando sento para trabalhar, aquela pessoa focada dá lugar a uma desatenta que lê três vezes a mesma frase. Uma cabeça cheia e várias janelas abertas. Os trabalhos criativos não saem. Os burocráticos andam com muita delonga e aqueles mais desafiadores permanecem sendo religiosamente adiados. Temos tudo. Só me falta “eu mesma” no momento.
Estou aqui dentro, mas estou lá fora.
Navego por notícias tentando entender e acompanhar os fatos. Meu coração se aperta pela dor que tantos vivem, pelos que estão morrendo, pelos que estão doentes, pelos vulneráveis e que passam grandes necessidades, pelos que não podem nem velar seus entes queridos. Uma inquietação, uma sensação de estar anestesiada, ou adormecida, ou por demais acordada. Nunca me senti assim. Ou já? Demorei dias a me dar conta que, sim, já me senti assim. Foi durante o luto.
Burn out da quarentena
Nas primeiras semanas da quarentena, fui ficando cada dia mais incomodada com a avalanche de sugestões do que “fazer com seu tempo” e do que “fazer com as crianças”. Desde fazer artes como origamis, curso de língua, visitas virtuais a museus, aulas de música, de dança, filmes e séries, aproveitar serviços de streaming, ler coleções de livros e leituras, ouvir podcasts e audio books, começar uma horta, reformar seu guarda-roupa, experimentar receitas de culinária, fazer um diário da quarentena, organizar a casa, bordar tapetes, transformar cortinas, reciclar itens antigos, restaurar móveis, pintar, participar de happy hours, fazer um MBA. Ufa. As propostas foram essas e mais dezenas. Fora as centenas de convites diários para LIVES. Nunca me desgastei tão rapidamente com uma palavra. Live (ao vivo). Quando tudo que queremos é nos manter ALIVE. (vivos).
Como uma taurina que demora a aceitar e elaborar mudanças, resisti a entender por que as sugestões da quarentena estavam me incomodando? Um pouco de culpa, talvez? Já que todos parecem conseguir realizar mil coisas, assistir tantas séries, menos eu? Ou por estar dormindo ao invés de me exercitando? Segui refletindo sobre a mais nova exigência do mundo moderno que nos tenta convencer a reproduzir em casa tudo que fazíamos fora dela.
De tudo que ouvi, fui resumindo a mensagem assim: “Você pode continuar trabalhando, se divertindo, aprendendo, interagindo, se distraindo, se estressando, até mesmo gastando seu dinheiro, só que agora tudo virtual, olha que beleza. É super simples, basta transferir a sua vida real para a virtual, um upload e pronto, temos uma nova vida prontinha para você na segurança do seu lar.”
Foi em um dia que parecia igual a todos os outros que me dei conta: não cabe tudo isso. Até tenho tempo, mas não tenho VONTADE de fazer todas essas coisas virtualmente. E mesmo que tivesse, o tempo que tenho não está apenas a serviço das minhas vontades, porque está sendo consumido em grande parte por obrigações e tarefas chatas e repetitivas que envolvem cozinha, faxina, roupas, louça, arrumações, em uma proporção bem maior do que antes, já que ficamos mais em casa e temos menos ajuda. Além do trabalho de sempre. Além dos cuidados com as crianças. Além do novíssimo, polêmico, e, por vezes, desafiador — homeschooling.
O meu, o seu, o nosso luto
Dali do alto do trapézio consigo ver que estamos agarrados a uma barra, ela é grande e confortável, mas lá embaixo, onde antes havia uma rede de apoio — que incluía professores, amigos, atividades extra curriculares, avós, enfim, companhias e lazer- agora resta o chão duro e frio. A iminência da morte. Ela está ali, não consigo vê-la, mas consigo senti-la. Ela é fria e solitária.
Então esse movimento eufórico — e vale destacar a etimologia da palavra eufórica — eu, fora — surgiu com força total no início da quarentena e esse tom de “faça tudo que sempre sonhou com seu tempo”, com foco no fazer — produzir, ocupar-se, talvez esconda duas intenções: a primeira, de nos confortar ainda que temporariamente, com a ilusão de que nada mudou, é apenas uma adaptação para a virtualidade. Continuaríamos eficientes como máquinas produtivas, programadas, obedientes e sem tempo para refletir, como convém aos sistemas desde sempre. E a segunda e grande motora desse texto e que agora finalmente parece pronto para nascer:
Assim, tão ocupados com a casa, com o trabalho virtual, com as reuniões no zoom, no jitisi, no facetime, no whastsapp, em tantas conexões ao mesmo tempo, em tantas mensagens e lives e ligações e videos, nos desconectamos do sentir.
O tempo todo ocupando todo o tempo, sem tempo para sentir. Vivendo, mas não sentindo.
Justamente por não estarmos fazendo aquilo que planejamos ou gostaríamos, estamos todos vivendo um luto coletivo. Há um vazio. Um espaço. É preciso olhar para ele.
Para mim, estamos todos em um luto coletivo. Eu, você e todos que vierem a ler esse texto, tivemos uma perda. Talvez (ainda) não humana, de alguém próximo, conhecido ou um ente querido, mas essa perda vai chegar. Por enquanto, começamos com as pequenas perdas. Perdemos uma viagem que estava programada, um aniversário a comemorar, um evento a atender, os amigos a reunir, os avós a visitar, os primos a encontrar. Perdemos o que havíamos programado ou gostávamos de fazer no final do dia, no final da semana ou no final do mês. Perdemos o encontro com alguém, os encontros que tínhamos com nós mesmos, as oportunidades de nos nutrirmos do convívio social. Perdemos nossa agenda. Mais importante, perdemos o toque, o contato, o beijo e o abraço. Perdemos ainda que temporariamente, a tranquilidade de ir e vir, de estar na praia, no cinema, na rua, de nos juntarmos, de aglomerar e de usufruir da tranquilidade de estar em um mundo aparentemente seguro e confortável. Vale lembrar, muitas pessoas aqui no Brasil e em outras partes do mundo nunca tiveram nada disso e perderam ainda muito mais — empregos, salário, moradia, possibilidade de crescimento, sonhos.
O ponto é que em maior ou menor escala, todos vivemos uma perda. Do planejado, do sonhado, do esperado. Em alguma camada aqui dentro de nós, esse sentimento reside e tem nome: luto.
Nosso luto individual se compõe em um mosaico com os lutos de todos. É como um tecido que se forma com os pedacinhos de cada casa, de cada família, e todos se agregam em um luto coletivo por mais de dois milhões de vidas humanas já perdidas até o momento. E por todas que ainda perderemos.
Novamente cá estou eu a escrever sobre luto. Eu que fui desperta ao tema em 2011, quando da perda de um filho recém-nascido, e para ele em 2015 escrevi Até Breve, José. Todos os dias, leio e escrevo sobre o tema, em trocas de e-mails e mensagens com leitoras e leitores.
Então talvez essa inquietude, esse fora-do-lugar, esse algo errado, esse cansaço, aliás, essa exaustão que alguns dias têm me acometido e talvez também a você, venha daí. Estamos enlutando o que perdemos até aqui e o que ainda vamos perder.
Reconhecer as perdas, se permitir sentir, e principalmente, se permitir chorá-las, é parte fundamental do processo do luto. Se você ainda não saiu do ritmo maratonista da quarentena, permita-se. Deixe sua Internet desligada por algumas horas, sim, você pode, é só apertar um botãozinho que fica atrás do seu roteador.
Deixe o vazio chegar. Não pegue nada para ler, não vá varrer a casa ou nem pintar paredes. Apenas deixe que ele te encontre, respire o tédio, o medo, a angústia e todos os outros sentimentos que vem com ele. É interessante observar como o vazio pode carregar tantas coisas.
Quando olhamos de perto, o vazio é muito cheio.
Permita-se inundar, transbordar esses sentimentos, e se puder, chore. Chore suas perdas. Chore por todos aqueles que nesse momento estão morrendo sozinhos, sem poderem ser velados. Por todos que estão nos hospitais, acamados. Pelos profissionais de saúde que todos os dias saem de casa, arriscando a própria vida, para cuidar de todos nós. Chore de raiva por todos que não estão fazendo o que você acha que elas deveriam estar fazendo. Chore pela governança conflituosa que nos deixa ainda mais inseguros em meio à crise. Chore pelas risadas leves que já não conseguimos dar. Chore de medo do que vem, chore de saudades do seu pai, da sua mãe, dos seus avós, de seus amigos, de beijar, abraçar e circular por aí. Chore o receio de talvez nunca mais ver algumas pessoas. Chore e deixe que as crianças também chorem — pelos amigos que não estão encontrando, por saudades da escola, das brincadeiras, do dia-a-dia, de todos os corpos que os abraçavam.
Crianças são espelhos. Se os seus filhos e filhas estão gritando mais, dormindo menos, parecem agitados e confusos, não é uma coincidência.
Ah, e se der, chore um pouco pelo futuro do pretérito também. Chore pela viagem que faria, pelo que realizaria, pelo amor que conheceria naquele final de semana que passou. Chore pelas trocas que teria, não fosse… Chore, minha amiga, meu amigo, chore seu luto pela humanidade que hoje enfrenta o maior desafio da nossa era, chore por cada sentir, do macro cosmo até o micro cosmo, do planeta todo até a muda que você plantou, mas talvez não vingou.
Tome seu tempo, Temos muito tempo. Tome seu tempo e chore seu luto.
E quando sentir que já o choro cessou, respire bem fundo. E perceba que apesar do luto, continuamos todos vivos. Que honra estar vivo. Que presente é a vida.
É possível sermos tristes e felizes ao mesmo tempo
Então chegamos agora na vida que há após o luto, e que chamamos de celebração. O que podemos celebrar? A tristeza já encontramos debaixo da pilha de ocupações internéticas onde se escondia, e fizemos amizade com ela. E agora desde essa leveza que só sente quem desaguou suas águas, podemos então, ousar celebrar.
Celebremos os aprendizados, o crescimento, as novidades, o convívio, as pessoas que amamos e estão ao nosso lado. Celebremos por cada dia que conseguimos sair da cama, que demos conta de um milhão de tarefas, que não xingamos ninguém e nem queimamos o arroz. Celebremos, afinal, os aprendizados e ganhos. Celebremos por cada papo virtual que nos foi concedido com um amigo ou familiar, por cada reunião que deu certo apesar de picar o áudio ou congelar a imagem, por cada grupo novo que nasceu, ideia que surgiu, cada meme que criaram (somos eternamente gratos!), cada descoberta da quarentena. Celebremos as refeições, a comida que temos, o aconchego, o espaço seguro em que estamos, seja do tamanho que for, a cama quentinha, o travesseiro que nos faz companhia nas noites insones, o Sol majestoso que, às vezes, nos alcança até mesmo dentro de casa.
Celebremos estarmos vivos, seguros, saudáveis. Celebremos estarmos todos aqui, agora.
Há tanto para celebrar! A vida é generosa, mesmo quando não parece.
Essa frase está no meu livro, e agora também está ainda mais viva em mim.
É mais autêntica a celebração depois de enlutar. São duas faces, como o dia e a noite. Ao trazer da sombra aquele luto não-dito, não-nomeado, que nos atormenta e desestabiliza, encontramos um caminho para sentirmos em paz, à luz da celebração.
Hoje completo 40 dias enlutando meus sentimentos e agora celebro! Finalmente, consegui escrever."
Camila Goytacaz - É professora de Comunicação e Liderança na FGV e
facilitadora de Comunicação Não-Violenta.
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