domingo, 26 de abril de 2020

O medo de ser livre provoca o orgulho em ser escravo

O medo de ser livre, provoca o orgulho em ser escravo – Blog do ...
"Há no homem um desejo imenso pela liberdade, mas um medo ainda maior de vivê-la. Algo parecido disse Dostoiévski, ou talvez eu esteja dizendo algo parecido com o dito pelo escritor russo.

No entanto, como seres significantes que somos, analisamos as coisas sempre a partir de uma determinada perspectiva e, assim, passamos a atribuir-lhes valor. Dessa maneira, até conceitos completamente opostos, como liberdade e escravidão, podem se confundir ou de acordo com o prisma de quem analisa, tornarem-se expressões sinônimas, como acontece no mundo distópico de George Orwell, 1984, em que um dos lemas do partido – “Escravidão é Liberdade” – é repetido à exaustão.

Não à toa, as boas distopias têm como grande valor predizer o futuro. E em todas elas – 1984, Admirável Mundo Novo, Fahrenheit 451, Laranja Mecânica – há um ponto em comum: a liberdade dos indivíduos é tolhida e, consequentemente, convertida em escravidão. No entanto, através de mecanismos sócio-políticos a escravidão é ressignificada como liberdade, de modo que mesmo tendo a sua liberdade cerceada, os indivíduos entendem gozarem plenamente desta.

Nas histórias supracitadas, embora a maior parte da população esteja acomodada e aceite com enorme facilidade absurdos, existem indivíduos que se permitem compreender as suas reais situações e ousam lutar contra a ordem estabelecida. Esse processo é, todavia, extremamente doloroso, uma vez que é muito mais fácil se acomodar a enfrentar a realidade e todas as consequências dolorosas que enfrentamos invariavelmente quando decidimos sair da caverna, para lembrar Platão.

Posto isso, há de se considerar que ser verdadeiramente livre requer a responsabilidade de encarar o mundo sem fantasias, ou seja, tal como ele é. Dessa forma, existe no homem grande suscetibilidade a aceitar o irreal como real, a fantasia como verdade, a Matrix como o mundo real. Sim, Matrix é um grande exemplo do medo que possuímos de encarar a realidade.

No personagem de Cypher (Joe Pantoliano) encontramos o maior expoente desse comodismo, já que sendo a realidade um mundo destruído, um caos constante, é muito melhor viver na Matrix, onde ele “pode ser o que quiser”, ainda que não passe de uma grande mentira.

Em outras palavras, Cypher representa a ideia de que sendo a realidade algo tão assustador, a ignorância é uma benção, pois sendo ignorante, pode-se comprar mentiras como verdades facilmente, bem como, aceitar a Matrix como realidade e a escravidão como liberdade.

As realidades apresentadas no mundo das artes (ficções, que ironia), refletem a nossa própria realidade, em que, assim como Cypher, temos preferido viver vidas fantasiosas, cercadas de superficialidade e aparências, determinadas pelo hedonismo da sociedade de consumo e, consequentemente, o nosso egoísmo ganancioso buscando galopantemente realizar todos os desejos que impedem de acordarmos de um sonho ridículo.

Apesar de tudo isso, pode-se considerar que de fato é melhor ser um escravo feliz do que um ser livre, triste, inconformado e amedrontado. No entanto, a problemática ganha corpo na medida em que se entende que há coisas que só podem ser feitas sendo o sujeito livre, uma vez que a gaiola é sempre limitadora, sobretudo, aos desejos mais intrínsecos e, portanto, mais latentes e verdadeiros no ser.

Assim, por mais que a escravidão seja ressignificada, fantasiada e “transformada” em liberdade, sempre haverá pontos em que o indivíduo sentirá necessidade de alçar voos mais altos, os quais, obviamente, não poderão ser realizados, haja vista a limitação das gaiolas, o que implica a insatisfação, ainda que tardia, da condição escrava em que o indivíduo se encontra.

Sendo assim, constatamos que “O medo de ser livre provoca o orgulho em ser escravo”, posto que para gozar a liberdade é preciso coragem para se arriscar no terreno das incertezas e da luta. E, assim, temos preferido permanecer na caverna, orgulhosos das nossas sombras, já que lembrando outra vez Dostoiévski – “As gaiolas são o lugar onde as certezas moram”. Entretanto, como disse, mais hora, menos hora, nos enxergamos e percebemos que o que nos circunda é falso, de tal maneira que desejamos sair, correr, voar, ser livres.

O grande problema nisso é que quando se acostuma a viver em uma gaiola, quando se é livre perde-se a capacidade de voar, pois as correntes que nos prendem são criadas pelas nossas mentes, de forma que mesmo fora da caverna, continuamos prisioneiros de uma mente que se acostumou a ser covarde e preferiu acreditar na contradição de que ser escravo era o maior ato de liberdade."

https://www.pensarcontemporaneo.com - Por Erick Morais
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domingo, 19 de abril de 2020

Dois tipos de felicidade

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"Antigamente, quando os deuses ainda pareciam bem próximos dos seres humanos, viviam numa pequena cidade dois cantores de nome Orfeu.

Um deles era o grande Orfeu. Inventara a cítara, precursora da guitarra, e quando dedilhava suas cordas e cantava, a natureza em torno ficava enfeitiçada. Animais ferozes e deitavam mansamente a seus pés, as altas árvores se curvavam para ele. Nada podia resistir a seus cantos, como era tão grande, cortejou a mais bela mulher. Depois começou declínio.

Enquanto ainda celebrava as bodas, morreu sua bela Eurídice, e a taça cheia partiu-se no momento em que era brindada. Mas, para o grande Orfeu, a morte ainda não era o fim. Valendo-se de sua arte requintada, encontrou a entrada do mundo subterrâneo, desceu ao reino das sombras, atravessou o rio do esquecimento, passou pelo cão dos infernos, apresentou-se vivo ante o trono do deus da morte e o comoveu com seu canto.

A morte liberou Eurídice, porém sob uma condição. Orfeu estava tão feliz que não percebeu o ardil oculto por trás do favor. Retomou o caminho de volta, ouvindo atrás desse os passos da mulher amada. Passaram ilesos pelo cão dos infernos, atravessaram o rio do esquecimento, começaram a subida em direção a luz, e já avistaram ao longe.

Então, Orfeu ouviu um grito - Eurídice tropeçara. Virou-se horrorizado, ainda viu a sombra desaparecendo na noite, e ficou só. Fora de si pela dor, cantou sua canção de despedida: "Ai de mim, eu a perdi, toda minha felicidade se foi! "

Ele próprio retornou a luz, mas no reino dos mortos passara a estranhar a vida. Quando algumas mulheres ébrias quiseram levá-lo à festa do vinho novo, ele recusou, e elas o despedaçaram em vida.
Tão grande foi a sua desgraça e tão inútil foi sua arte. Porém todo mundo o conhece!

O outro Orfeu era o pequeno. Era apenas um músico ambulante que se apresentava em pequenas festas tocava para gente humilde, alegravam pouco e se divertia com isto. Como não podia viver de sua arte, aprender um ofício comum, casou-se com uma mulher comum, teve filhos comuns, pecou eventualmente, foi feliz de uma forma totalmente comum, morreu velho insatisfeito com a vida.

Mas, ninguém o conhece - exceto eu!
No Centro Sentimos a Leveza- Bert Hellinger
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    "As histórias podem dizer o que não pode ser expresso de outra forma, pois também sabem ocultar o que mostram.Encaramos a sua verdade como pressentimos, por trás de um véu, o rosto de uma mulher.
      Quando as ouvimos nos sentimos como se entrássemos numa catedral. Estando na obscuridade, vemos os vitrais iluminados. Mas, quando as luzes se acendem, só percebemos a moldura."

Nunca vi uma explicação melhor para as  histórias... uma metáfora que nos ajuda a olhar para aquilo que está oculto!
A felicidade nos parece sedutora e enganosa, atraente e perigosa. Pois, muitas vezes, o que desejamos nos traz desgraça, e o que tememos nos deixa felizes. Às vezes, preferimos nos apegar à desgraça, por nos parecer segura ou maior, ou porque a consideramos como inocência ou como  merecimento, ou porque vemos como um penhor da felicidade futura.
Então. talvez, desprezemos a felicidade como corriqueira ou como transitória e fugaz. Ou então a temamos como culpa e traição, como uma afronta ou como prenunciadora de desgraça...
Pensemos!

Boa semana. Se cuidem, se protejam da melhor forma possível. Tenho visto muita imprudência na cidade: abraços, máscaras abaixo do queixo, nariz fora da proteção (oi?), etc...  
Trabalhe e saia, se necessário, mas proteja-se.
Tais

domingo, 12 de abril de 2020

As certezas são uma ilusão

CYPHER "Mundo de Ilusões" - Hiosaki - LETRAS.MUS.BR

Ao conferir uma leitura sobre a pandemia do coronavírus e o isolamento social em entrevista ao jornal francês CNRS, o filósofo Edgar Morin explicita que o cenário nos impõe desconstruções: a desconstrução da crença em verdades absolutas na ciência, da obstinação por garantias e certezas, e da pesquisa sem controvérsias.

O momento em que vivemos tende a convencer cidadãos e pesquisadores de que as teorias científicas são biodegradáveis e que “a ciência é uma realidade humana que, como a democracia, se baseia em debates de ideias, embora seus métodos de verificação sejam mais rigorosos”. 

Aos 98 anos, Morin acredita que somos obrigados a encarar as incertezas, mas que podemos abraçar a certeza dos fatos que acompanhamos diariamente: o despertar da solidariedade e a oportunidade de reforçar a consciência das verdades humanas que fazem a qualidade de vida: amor, amizade, comunhão e solidariedade. Leia a entrevista completa abaixo. 
Edgar Morin. Foto: Max PPP
A pandemia de coronavírus trouxe brutalmente a ciência de volta ao centro da sociedade. Será que vamos sair transformados?

Edgar Morin: O que me impressiona é que grande parte do público via a ciência como o repertório de verdades absolutas, afirmações irrefutáveis. E todos ficaram tranquilos ao ver que o presidente estava cercado por um conselho científico. Mas o que aconteceu? 

Rapidamente, percebemos que esses cientistas defendiam pontos de vista muito diferentes e, às vezes, contraditórios, seja nas medidas a serem adotadas, nos possíveis novos remédios para responder à emergência, na validade desse ou daquele medicamento, na duração dos ensaios clínicos a serem realizados .... Todas essas controvérsias introduzem dúvidas nas mentes dos cidadãos.

Você quer dizer que o público pode perder a confiança na ciência?

Edgar Morin: Não se ele entender que as ciências vivem e progridem através de controvérsias. Os debates em torno da cloroquina, por exemplo, levantaram a questão da alternativa entre urgência e cautela. 

O mundo científico já conhecia fortes controvérsias na época do surgimento da Aids, nos anos 80. No entanto, o que nos mostrou os filósofos das ciências, é precisamente que as controvérsias são parte inerente da pesquisa. 

Infelizmente, poucos cientistas leram Karl Popper, que estabeleceu que uma teoria só é científica se for refutável, Gaston Bachelard, que colocou o problema da complexidade do conhecimento, ou Thomas Kuhn, que mostrou como a história da ciência é um processo descontínuo. Muitos cientistas ignoram a contribuição desses grandes epistemólogos e ainda trabalham de uma perspectiva dogmática.

A crise atual provavelmente modificará essa visão da ciência?

Edgar Morin: Não posso prever, mas espero que sirva para revelar o quanto a ciência é mais complexa do que gostaríamos de acreditar. 

A ciência é uma realidade humana que, como a democracia, se baseia em debates de ideias, embora seus métodos de verificação sejam mais rigorosos. Apesar disso, as principais teorias aceitas tendem a se tornar dogmatizadas, e os grandes inovadores sempre lutaram para que suas descobertas fossem reconhecidas.

O episódio que estamos passando hoje pode, portanto, ser o momento certo para conscientizar os cidadãos e pesquisadores da necessidade de entender que as teorias científicas não são absolutas, como os dogmas das religiões, mas biodegradáveis.

A catástrofe da saúde, ou a situação sem precedentes de confinamento que estamos enfrentando atualmente: qual você acha que é a mais impressionante?

Edgar Morin: Não há necessidade de estabelecer uma hierarquia entre essas duas situações, pois a sequência delas foi cronológica e leva a uma crise que se pode dizer da civilização, porque nos força a mudar nosso comportamento e mudar nossas vidas, local e globalmente.

Tudo isso é um todo complexo. Se você quer vê-lo de um ponto de vista filosófico, precisa tentar estabelecer a conexão entre todas essas crises e pensar antes de tudo na incerteza, que é a principal característica.

O que é muito interessante, na crise do coronavírus, é que ainda não temos certeza sobre a própria origem desse vírus, nem sobre suas diferentes formas, as populações que ataca, seus graus de nocividade. Mas também estamos passando por uma grande incerteza sobre todas as consequências da epidemia em todas as áreas, sociais, econômicas, etc...

Mas como você acha que essas incertezas formam o elo entre todas essas crises?

Edgar Morin: Temos que aprender a aceitá-las e a viver com elas, enquanto nossa civilização instalou em nós a necessidade de certezas cada vez maiores sobre o futuro, muitas vezes ilusórias, às vezes frívolas.

A chegada do coronavírus nos lembra que a incerteza permanece um elemento inexpugnável da condição humana. Todo o seguro social em que você pode se inscrever nunca poderá garantir que você não ficará doente ou será feliz em sua casa.

Tentamos nos cercar com o máximo de certezas, mas viver é navegar em um mar de incertezas, através de ilhotas e arquipélagos de certezas nos quais nos reabastecemos.

É sua própria regra de vida?

Edgar Morin: Pelo contrário, é o resultado da minha experiência. Testemunhei tantos eventos imprevistos em minha vida - desde a resistência soviética na década de 1930 até a queda da URSS, para mencionar apenas dois fatos históricos improváveis antes que eles acontecessem - que faz parte do meu jeito de ser.

Não vivo em permanente ansiedade, mas espero que eventos mais ou menos catastróficos ocorram. Não estou dizendo que previ a epidemia atual, mas digo, por vários anos, que com a degradação de nossa biosfera, devemos nos preparar para desastres. Sim, faz parte da minha filosofia: "Espere o inesperado”.

Além disso, eu me preocupo com o destino do mundo depois de ter entendido, quando li Heidegger em 1960, que vivemos na era planetária; em 2000, a globalização era um processo que poderia causar tanto dano quanto benefício.

Também observo que a explosão descontrolada do desenvolvimento tecno econômico, animada por uma sede ilimitada de lucro e favorecida por uma política neoliberal generalizada, tornou-se prejudicial e provocou crises de todos os tipos. A partir desse momento, estou intelectualmente preparado para enfrentar o inesperado, para enfrentar convulsões.

Como você julga a gestão da epidemia pelas autoridades públicas francesas?

Edgar Morin: Lamento que certas necessidades tenham sido negadas, como a de usar uma máscara, apenas para ... esconder o fato de que não havia nenhuma. Disseram também: os testes são inúteis, apenas para camuflar o fato de que também não tínhamos testes. Seria humano reconhecer que os erros foram cometidos e que iremos corrigi-los. A responsabilidade passa pelo reconhecimento de seus erros. 

Dito isto, observei que, desde seu primeiro discurso de crise, o Presidente Macron não falou apenas de empresas, ele falou de funcionários e trabalhadores. É uma primeira mudança. Espero que ele se liberte do mundo financeiro: ele até mencionou a possibilidade de mudar o modelo de desenvolvimento...

Caminhamos então para a mudança econômica?

Edgar Morin: Nosso sistema baseado em competitividade e rentabilidade geralmente tem sérias consequências para as condições de trabalho. A prática massiva de teletrabalho causada pelo confinamento pode ajudar a mudar o funcionamento das empresas que ainda são hierárquicas ou autoritárias demais.

A crise atual também pode acelerar o retorno à produção local e o abandono de toda a indústria descartável, dando assim novos empregos a artesãos e empresas locais. Nesse período em que os sindicatos são muito fracos, são todas essas ações coletivas que podem impactar na melhoria das condições de trabalho.

Estamos passando por uma mudança política, onde as relações entre o indivíduo e o coletivo estão mudando?

Edgar Morin: O interesse individual dominou tudo, e agora a solidariedade está despertando. Olhe para o mundo hospitalar: esse setor estava em profundo estado de dissensão e descontentamento, mas, diante do influxo de pacientes, demonstrou extraordinária solidariedade.

Mesmo confinada, a população entendeu isso bem e respondeu aplaudindo, à noite, todas as pessoas que se dedicam e trabalham para elas. Este é, sem dúvida, um momento de progresso, pelo menos em nível nacional.

Não estou dizendo que a sabedoria é permanecer no seu quarto a vida toda, mas, em relação ao nosso modo de consumir, esse confinamento talvez seja o momento de nos livrarmos dessa cultura industrial cujos vícios são conhecidos.

Infelizmente, não podemos falar de um despertar da solidariedade humana ou planetária. No entanto, já éramos seres humanos de todos os países, enfrentando os mesmos problemas diante da degradação ambiental ou do cinismo econômico.

Enquanto hoje, da Nigéria à Nova Zelândia, todos nos sentimos confinados, devemos perceber que nossos destinos estão ligados, gostemos ou não. Este seria um bom momento para refrescar nosso humanismo, porque até vermos a humanidade como uma comunidade de destino, não podemos pressionar os governos a agirem de maneira inovadora.

O que podemos aprender com a filosofia ao passar por esses longos períodos de confinamento?

Edgar Morin: É verdade que, para muitos de nós que vivemos grande parte de nossas vidas longe de casa, esse confinamento repentino pode representar um terrível embaraço. Mas eu acho que pode ser também uma oportunidade para refletir, para imaginar o que em nossa vida é frívolo ou inútil.

É também uma oportunidade de nos tornarmos permanentemente conscientes dessas verdades humanas que todos conhecemos, mas que são reprimidas em nosso subconsciente: que amor, amizade, comunhão, solidariedade são o que fazem a qualidade de vida.


Edgar Morin, sociólogo e filósofo francês.
As certezas são uma ilusão -  www.fronteiras.com
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domingo, 5 de abril de 2020

O que podemos aprender com a quarentena?

CORONA EXPRESS: Retratos da vida em quarentena (terça, 17/3 ...
- Capitão, o menino está preocupado e muito inquieto devido à quarentena que o porto nos impôs.

- O que te inquieta, menino? Não tens comida suficiente? Não dormes o suficiente?

- Não é isso, Capitão. É que não suporto não poder ir à terra e abraçar minha família.

- E se te deixassem sair do navio e estivesses contaminado, suportarias a culpa de infectar alguém que não tem condições de aguentar a doença?

- Não me perdoaria nunca, mas para mim inventaram essa peste.

- Pode ser, mas e se não foi inventada?

- Entendo o que queres dizer, mas me sinto privado da minha liberdade, Capitão, me privaram de algo.

- E tu te privas ainda mais de algo.

- Está de brincadeira, comigo?

- De forma alguma. Se te privas de algo sem responder de maneira adequada, terás perdido.

- Então quer dizer, segundo me dizes, que se me tiram algo, para vencer eu devo privar-me de mais alguma coisa por mim mesmo?

- Exatamente. Eu fiz quarentena há 7 anos atrás.

- E o que foi que tiveste de te privar?

- Eu tinha que esperar mais de 20 dias dentro do barco. Havia meses em que eu ansiava por chegar ao porto e desfrutar da primavera em terra. Houve uma epidemia. No Porto Abril nos proibiram de descer. Os primeiras dias foram duros. Me sentia como vocês. Logo comecei a confrontar aquelas imposições utilizando a lógica. Sabia que depois de 21 dias deste comportamento se cria um hábito, e em vez de me lamentar e criar hábitos desastrosos, comecei a comportar-me de maneira diferente de todos os demais. Comecei com o alimento. Me impus comer a metade do quanto comia habitualmente. Depois comecei a selecionar os alimentos de mais fácil digestão, para não sobrecarregar o corpo. Passei a me nutrir de alimentos que, por tradição histórica, haviam mantido o homem com saúde.

O passo seguinte foi unir a isso uma depuração de pensamentos pouco saudáveis e ter cada vez mais pensamentos elevados e nobres. Me impus ler ao menos uma página a cada dia de um argumento que não conhecia. Me impus fazer exercícios sobre a ponte do barco. Um velho hindu me havia dito anos antes, que o corpo se potencializava ao reter o alento. Me impus fazer profundas respirações completas a cada manhã. Creio que meus pulmões nunca haviam chegado a tamanha capacidade e força. A parte da tarde era a hora das orações, a hora de agradecer a uma entidade qualquer por não me haver dado, como destino, privações graves durante toda minha vida.

O hindu me havia aconselhado também a criar o hábito de imaginar a luz entrando em mim e me tornando mais forte. Podia funcionar também para as pessoas queridas que estavam distantes e, assim, integrei também esta prática na minha rotina diária dentro do barco.

Em vez de pensar em tudo que não podia fazer, pensava no que faria uma vez chegado à terra firme. Visualizava as cenas de cada dia, as vivia intensamente e gozava da espera. Tudo o que podemos obter em seguida não é interessante. Nunca. A espera serve para sublimar o desejo e torná-lo mais poderoso. Eu me privei de alimentos suculentos, de garrafas de rum e outras delícias. Me havia privado de jogar baralho, de dormir muito, de praticar o ócio, de pensar apenas no que me privaram.

- Como acabou, Capitão?

- Eu adquiri todos aqueles hábitos novos. Me deixaram baixar do barco muito tempo depois do previsto.

- Privaram vocês da primavera, então?

- Sim, naquele ano me privaram da primavera, e de muitas coisas mais, mas eu, mesmo assim, floresci, levei a primavera dentro de mim, e ninguém nunca mais pode tirá-la de mim.
Do Livro Vermelho de C.G. Jung
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